sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Mensalão, traço de audiência


Fazia tempo que eu não via tanta gente reunida para ver televisão. Foi no lugar onde trabalho, ontem à tarde. As pessoas levantavam de suas cadeiras, e iam, apressadas para a frente de um dos dois pequenos aparelhos colocados displicentemente sobre mesas. Escondiam o nervosismo fazendo piadas, rindo, até que, em certo momento, depois de vários "vai, vai, vai" de incentivo, se dispersaram e voltaram ao trabalho, decepcionadas.
Não, não foi o início do julgamento do tal mensalão pelo Supremo Tribunal Federal, acontecimento mais noticiado em toda a história recente do país, que levou o pessoal em frente à pequena e velha TV de 14 polegadas, mas sim a prova de 200 metros medley dos jogos olímpicos de Londres, na qual o brasileiro Thiago Pereira concorria, com boas chances de beliscar uma medalha. Se na piscina seu desempenho não foi satisfatório - ele ficou em quarto lugar -, pelo menos lá onde eu passo meus dias na labuta, durante intermináveis segundos ele foi imbatível, soberano, único.
Na televisãozinha ao lado daquela onde Thiago frustrou nossa ambição por medalhas olímpicas, os ministros do Supremo davam seu show tão aguardado por uma certa parcela da sociedade brasileira, discutiam picuinhas naquela língua inacessível aos pobres mortais, se tratavam por "excelência", tentavam, com todo o esforço, brilhar para as câmeras e se tornar astros de um episódio que passará para a história menos por sua importância ética, moral ou jurídica, mas muito mais por mostrar que a hipocrisia é um dos componentes mais fortes da personalidade humana.
Não creio que o lugar onde trabalho seja o mais representativo do universo brasileiro. Há poucos pobres e negros ali, há muitos brancos de classe média, quase todos de nível universitário. Apesar disso, 99,9% deles ignoraram o show do tal mensalão. Na verdade, só o assistiu quem, por absoluta necessidade, precisava saber o que ocorria naquele mundo paralelo do Supremo Tribunal Federal.
Para quem não sabe, sou jornalista, passo meus dias numa redação.
Por isso, porque meu olhar poderia estar contaminado pelo comportamento de uma parcela insignificante da sociedade, sou obrigado a recorrer ao depoimento de quem esteve nas ruas ontem à tarde e pôde observar a reação das pessoas ao inicio do retumbante espetáculo do tal mensalão, há tantos anos aguardado e tão anunciado nesses últimos dias.
Vamos ler, então, um trecho da reportagem do "Valor", de Vandson Lima, que saiu para ver se a metrópole havia parado na quinta-feira à tarde:
Na fachada das lojas populares de eletrodomésticos do centro de São Paulo, grandes televisores, cuja compra pode ser parcelada em até 24 vezes, dividiam-se na programação do dia. A animação Monstros S.A. e a transmissão dos jogos olímpicos em Londres ocupavam com grande vantagem as telas, com exceções dedicadas a programas de culinária e uma apresentação da banda americana Bon Jovi. Nenhuma mostrava o primeiro dia do histórico julgamento da Ação Penal nº 470, vulgo mensalão.
Seguindo pelo Vale do Anhangabaú, palco de manifestações que reuniram milhões na reivindicação por eleições presidenciais diretas e pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor, nenhum sinal, cartaz ou manifestação sinalizava que se iniciara o julgamento da década. Na lanchonete anexa ao Centro Acadêmico "XI de Agosto", representação estudantil da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), um telão exibia a derrota da seleção brasileira de vôlei para os Estados Unidos por 3 sets a 1. Mas os futuros bachareis se mantinham ligados via internet no embate que corria no Supremo. Quatro dos atuais ministros passaram pela instituição. ... 
No Twitter, o termo #mensalao foi bastante utilizado por repórteres e sites noticiosos. Ao fim do dia, entretanto, sequer aparecia entre os tópicos mais citados. 
Nas tevês instaladas no metrô, as notícias eram sobre a primeira rodada da Copa Sul-Americana de futebol, na qual Palmeiras e São Paulo venceram seu jogos. Mas ganhou a atenção dos passageiros a pesquisa que apontou que 7% dos brasileiros acima dos 18 anos já experimentou maconha. Em 15 minutos de trajeto, nenhuma notícia de mensalão. A Olimpíada também dominou os televisores nas lanchonetes das faculdades Politécnica, de Economia e Administração, na Escola de Comunicação e Artes e na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Na mesma edição do jornal, outra notícia, de Sergio Ruck Bueno, atestava o fracasso dessa hercúlea tentativa da oposição de defenestrar do Palácio do Planalto o PT e aliados:
Apesar da ampla divulgação que o caso já ganhou e continuará recebendo nos meios de comunicação, o julgamento do mensalão terá pouca influência no desempenho do PT na eleição municipal deste ano. Com a possível exceção de São Paulo, onde o partido pode sofrer maiores prejuízos por conta do antipetismo local mais forte e da polarização com o PSDB, os eleitores votarão com pragmatismo, mais interessados na preservação das condições econômicas pessoais e menos preocupados com questões éticas. A avaliação é da professora de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Helcimara de Souza Telles, e da diretora-presidente do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari Nunes.
Para Márcia, o grande estrago que o mensalão poderia causar para o PT já aconteceu em 2005, logo depois do estouro do escândalo. "Naquele momento ele [o PT] perdeu o diferencial de ética que tinha em relação aos outros partidos e se igualou aos demais. Hoje estão todos no mesmo barco", entende. "Se [na eleição de 2012] tiver algum efeito, será em São Paulo, e só."
Além disso, o próprio eleitor é "cúmplice'"da corrupção quando, por exemplo, compra produtos piratas ou tenta subornar agentes de trânsito para não ser multado. Some-se isto ao nivelamento por baixo da imagem dos partidos em questão de moralidade e o discurso ético já "não cola" tanto, acredita a pesquisadora...
"O mensalão vai resvalar como discurso de campanha apenas em algumas capitais, mas não terá efeito em todas justamente por causa do cinismo e do consumismo das pessoas" diz Helcimara. "Como diz um aluno meu, são eleitores que preferem o "voto geladeira": votam naquele que dá condições de pagar o carnê da geladeira." Ela também vê uma possível exceção em São Paulo, por conta da predisposição antipetista mais forte na cidade.
Bem, é isso, acho que já falamos demais de um programa de televisão que deu traço de audiência, que faz companhia a tantas outras produções tão pretensiosas quanto impopulares que ninguém sabe por que existem.
Como deu para perceber, o povo gosta de se distrair vendo outras coisas. Ficção por ficção, novela por novela, ele prefere atores profissionais, mesmo os mais canastrões, os mais mequetrefes.

Um comentário: