terça-feira, 9 de março de 2010

Uma metáfora da arte

Nestes tempos pós-Oscar, em que filas bem-comportadas aguardam pacientemente a hora de conferir a justiça das premiações, é no mínimo estranho que um filme como "Jards Macalé: Um Morcego na Porta Principal", de Marco Abujamra e João Pimentel, esteja em cartaz em São Paulo. Estranho, mas simbólico: se por um lado o protagonista, pela qualidade de sua produção musical, realmente merece um prêmio como o Oscar, por outro, sempre fez de tudo para ser rejeitado pelas academias da vida, devido às suas brigas constantes com o establishment, com a indústria fonográfica, com os colegas de profissão - até mesmo com o público.
Alguém pode dizer que artista é assim mesmo, temperamental, cheio de idiossincracias, revoltado. Mas nem todos agem dessa maneira. Na verdade, são bem poucos os que optam por viver sem concessões, na completa solidão, ouvindo "o silêncio do seu próprio corpo", como a certa altura do "documentário", Macalé afirma.
O filme, uma metáfora sobre a dificuldade da criação artística no Brasil, mostra como é difícil para um ser humano passar pela vida sendo completamente fiel ao menos àquilo que gosta, que sabe fazer, aos seus valores, aos seus ideais. Num dos pontos altos do filme, um Gilberto Gil engravatado explica que o próprio ato de viver é uma concessão - e que ele já fez inúmeras.
É algo para se pensar.
Infelizmente não é possível saber se o cantor, compositor e violonista Jards Macalé concorda com Gilberto Gil. Pela história que o filme conta, provavelmente não. Afinal, como um sujeito que levou tantas porradas em sua carreira pode ter ultrapassado o limite de suas crenças?
"Maldito é a mãe", protesta Macalé à abordagem do inevitável epíteto que o persegue. "Um Morcego na Porta Principal" deixa claro que, se Macalé teve de nadar contra a corrente e desafinar o coro dos contentes, não foi porque ele nasceu um anjo torto. Foi simplesmente porque reagiu, como artista sensível, à violência de uma época em que só era permitido sonhar em branco e preto - um reflexo daquele Brasil cinza construído por golpes de baionetas e cacetadas.
Hoje, depois da longa travessia, ele parece ter transformado a rebeldia explícita num cinismo sereno, uma quase aceitação das mudanças pelas quais o país passou. A paisagem definitivamente mudou: em vez daquele abismo na porta principal, ele já pode contemplar plácidas e verdes montanhas em sua casa no campo.

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