Miep Gies era a única sobrevivente do pequeno grupo de pessoas que conheciam o esconderijo onde os Frank viveram por dois anos, em Amsterdã, durante a Segunda Guerra Mundial. Era secretária do pai de Anne Frank, Otto, e ajudou sua família e outras quatro pessoas a se esconderem dos nazistas, de 1942 a 1944. Depois que uma denúncia anônima levou os alemães à descoberta do esconderijo e à prisão dos Frank e seus companheiros, Miep encontrou no local o diário e outras anotações de Anne, cujo conteúdo virou um dos livros mais lidos do mundo e uma obra fundamental para compreender o que era a vida sob um regime totalitário.
No Brasil, sob os anos de chumbo da ditadura militar, tal e qual sob Alemanha de Hitler, as pessoas viviam sem nenhuma garantia de respeito aos seus direitos fundamentais. Como no caso dos Frank, uma denúncia, feita sabe-se lá com que propósito, poderia levar qualquer um à prisão, à tortura ou à morte. Eram os tempos do "Ameo-o ou deixe-o".
No Brasil atual as pessoas falam o que querem, têm toda a liberdade para criticar o governo, a oposição usa sem nenhuma cerimônia os palanques generosamente oferecidos pela mídia. O país é uma democracia, jovem ainda, com imperfeições visíveis, mas onde as instituições se respeitam e procuram trabalhar.
Essa polêmica que a imprensa vem alimentando sobre o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos faz parte do jogo democrático. As instituições que se sentiram prejudicadas por algumas das diretrizes do documento estão aí chiando. São os ruralistas, que toda a vida viveram da exploração da mão de obra; a Igreja, com suas práticas medievais; os militares, ainda apegados à velha doutrina da Guerra Fria; os políticos oposicionistas, por razões óbvias; a própria imprensa, com seu monopólio da verdade.
E eis que agora aparecem os advogados paulistas como os mais novos críticos do plano. Segundo nota divulgada pela seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a criação da Comissão da Verdade, prevista no documento para investigar torturas e desaparecimentos durante o regime militar, precisa ser mais bem detalhada "para afastar o que vem sendo compreendido como revanchismo pelos militares".
O entendimento dos advogados paulistas diverge da análise da OAB nacional, que apoia a criação da comissão. Para o presidente do Conselho Federal da Ordem, Cezar Britto, os militares que cometeram crimes de lesa-humanidade no período do regime militar (1964-1985) devem ser punidos legalmente.
O presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, também se manifestou a favor da comissão e sugeriu a demissão do ministro da Defesa, Nelson Jobim, e dos comandantes militares contrários à punição de crimes cometidos na ditadura.
Já para a OAB-SP, "as reações contrárias de inúmeros setores da sociedade organizada às propostas formuladas pelo plano demonstram que as soluções apontadas não foram suficientemente debatidas e não passaram pela devida reflexão do povo brasileiro, embora possam agradar a alguns grupos pelo seu viés ideológico". A OAB paulista afirma que o objetivo da comissão deve ser o de esclarecer o que aconteceu com os ainda 140 desaparecidos durante o regime militar.
A nota é assinada pelo presidente da seção paulista, Luiz Flávio Borges D'Urso, e pelo coordenador da comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, Martim de Almeida Sampaio. A entidade critica ainda a proposta de criação de uma comissão que monitore o tratamento dado pelos meios de comunicação aos direitos humanos. Para ela, a ideia é uma nova tentativa de censura à imprensa. "Da forma como está [o plano], não pode permanecer", afirma a nota.
Vale lembrar que Luiz Flávio Borges D'Urso foi um dos idealizadores do fracassado movimento Cansei, que reunia setores do empresariado, representantes da alta burguesia e artistas da Globo que pretendiam convencer a população brasileira que este era um país governado por um analfabeto e corrupto que merecia ser defenestrado para dar lugar a alguém mais próximo a eles. De preferência algum medalhão tucano, desses que dizem que vão mudar tudo para tudo ficar exatamente como era antes.
Borges D'Urso também trabalhou intensamente na campanha eleitoral de Gilberto Kassab e, na Folha, na ocasião, deu um depoimento sincero e apaixonado sobre as razões de sua escolha: "Ele está sendo um excelente prefeito para São Paulo. E meu filho integra o Democratas, foi candidato a vereador por esse partido. Por esses motivos, voto em Kassab."
Como já disse, o Brasil é hoje uma democracia e todo mundo tem o direito de falar o que quiser - e de ouvir, também. É o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sob cujo governo foram concluídos os dois planos nacionais de direitos humanos anteriores, que, na essência são iguais a este que provoca tanta discussão.
Em entrevista à BBC, na semana passada, FHC disse que a maneira como o governo Lula apresentou a proposta para a criação da Comissão da Verdade criou “um obstáculo” para se saber o que ocorreu no período, ao causar “intranquilidade” entre os militares.“Eu penso que a situação do Brasil não pode ser comparada com a situação da Argentina ou com o Chile (que criaram comissões para apurar abusos durante seus regimes militares)”, disse. “Este não é um assunto político no Brasil, mas uma questão de direitos humanos, o que para mim é importante, mas o perigo é transformar isso em um assunto político”.
Está certo ele. É muito perigoso mesmo politizar um tema tão precioso a todos nós.
Por isso mesmo é que tanta gente que está dando agora seus pitacos com o propósito de tumultuar o debate, provocar confusão, desinformar o público, constranger autoridades, promover a intriga, de semear o caos, enfim, deveria se lembrar do que foi este país num passado recente e o que ele é agora.
Talvez assim eles cheguem à conclusão de que o melhor neste momento é calar a boca.
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