terça-feira, 29 de setembro de 2009

Complexo de vira-lata


Presto hoje, com a voz de um dos mais notáveis jornalistas, cronistas e teatrólogos que o Brasil já produziu, uma homenagem a todas as mentes colonizadas que infestam os meios de comunicação e sofrem ao ver o país, lenta, mas inexoravelmente, superar o seu atraso centenário.
Nelson Rodrigues soube, como ninguém, expressar em seus textos inteligentes, bem humorados, irresistíveis, a alma do cidadão comum, esse que vê, por exemplo, no futebol não um jogo, mas a representação da vida.
Os excertos são das crônicas "Voltamos a ser Vira-Latas","Coices e Relinchos Triunfais" e "A Cara da Derrota", reunidas no livro "A Pátria de Chuteiras - Novas Crônicas de Futebol" (Companhia das Letras, 195 páginas), uma seleção de textos do período 1955-1978. Elas foram escritas depois que a seleção brasileira foi eliminada nas oitavas-de-final da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra.
Nelson estava desconsolado por ver o melhor futebol do mundo assistir ao mecânico jogo inglês (com a ajuda dos árbitros) sair vitorioso. E soltou seus petardos:

"Amigos, eu sempre digo que, antes de 58 e 62, o Brasil era um vira-lata entre as nações, e o brasileiro, um vira-lata entre os homens. Bem me lembro de um episódio que me parece extremamente simbólico. Imaginem vocês um velório de ministro. Lá estava o morto ilustre, mais condecorado que uma árvore de Natal. O presidente da República comparecera, cochichando ao ouvido da viúva: - 'Grande perde, grande perda!' Mortalmente lisonjeada, a viúva quase caiu no chão, cravejada de brilhantes.
Pois bem. E súbito, ouve-se o berro: - 'Olha o rapa!' Foi o caos lá dentro. Senhoras subiam pelas paredes e se penduravam no lustre. Os homens se atiravam pelas janelas. Até o defunto saiu correndo. Eis o que eu queria dizer: - aí estava um retrato do Brasil e do brasileiro. Éramos assim antes das Copas da Suécia e do Chile. Na nossa humildade feroz de subdesenvolvidos, tínhamos esse complexo ululante do rapa.
Só em 58 é que, de repente, o Brasil e o brasileiro deixaram de ser vira-latas."

"Amigos, o meu personagem da semana é o cronista patrício que foi à Inglaterra. Pois bem: - saiu daqui bípede e voltou quadrúpede. Desembarcou no Galeão soltando, em todas as direções, os seus coices triunfais. Por aí se vê que o subdesenvolvido não pode viajar e repito: - não pode nem ultrapassar o Méier. A partir de Viário Geral baixa, em nós, uma súbita e incontrolável burrice...
... O cronista que foi à Inglaterra (salvo raríssimas exceções) quer apenas isto: - fazer do futebol brasileiro uma miserável colônia do futebol inglês...
"... Aprendemos também que um império se faz pulando o muro e saqueando o vizinho."

"Amigos, o mínimo que se pode esperar do subdesenvolvido é o protesto. Ele tem de espernear, tem de subir pelas paredes, tem de se pendurar no lustre. Sua dignidade depende de sua indignação. Ou ele, na sua ira, dá arrancos de cachorro atropelado, ou temos de chorar pela sua alma.
E , vamos e venhamos, nada mais abjeto do que subdesenvolvimento consentido, confesso e até radiante...
"... Um subdesenvolvido não pode manter a sua dignidade sem o protesto. É o protesto, repito, que o salva, que o redime e que o potencializa...
"... Então eu vi que a tragédia do subdesenvolvimento não é só a miséria ou a fome, ou as criancinhas apodrecendo. Não. Talvez seja um certo comportamento espiritual. O sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não se reconhece nem o direito de ser vítima...
... Nós já somos um povo que não faz outra coisa senão perder! Olhem a nossa cara. Reparem: - é a cara da derrota. Afinal de contas, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota cotidiana, a humilhação de cada dia e de cada hora? E é uma ignomínia que venha alguém dizer a esse povo desesperado: - 'Vá perdendo! Continue perdendo! Aprenda a perder!' "

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