A revista Reader's Digest traz até hoje uma seção chamada Meu Tipo Inesquecível. O título é auto-explicativo: as pessoas lembram de outras que as marcaram pelo resto da vida.
Não sei se todos tiveram o privilégio de encontrar um tipo inesquecível. Afortunado, posso dizer que lá pelos anos 70, na então pacata Jundiaí, topei com uma dessas pessoas que não se esquecem facilmente, pela simples razão de que são, de alguma maneira, diferentes das outras.
Quem conheceu o sociólogo Antonio Geraldo de Campos Coelho certamente sabe que ele era uma desses tipos. Maluco, diziam alguns; apenas excêntrico, diziam outros. Certo é que ninguém que conversasse com ele, por poucos minutos que fosse, sairia indiferente da prosa.
O Coelho tinha uma erudição total para temas que o fascinavam, como a sociologia política, e era absolutamente analfabeto para outros, mais triviais, como o futebol - ou o ludopédio, como se referia ao esporte preferido dos brasileiros.
Era cheio de manias. Não admitia, por exemplo, que o chamassem de professor - embora, em certa época da vida tivesse dado aulas. Para ele, o "epíteto" soava degradante, pois o igualava ao instrutor de capoeira, que, para o senso comum, também era professor.
Também apelidava amigos e inimigos. Entre nós havia o Chocolate, o Estilingue, o Peixe-Galo, o Menino Lobo, o Homem de Palha. Não sei porque, fiquei fora da lista.
Mas o que distinguia mesmo o Coelho dos outros mortais era o fato de que ele se dedicava, com uma paixão cega, a combater o marxismo. E, como em várias outras coisas, fazia isso de um modo peculiar: procurava vencer o inimigo por meio de argumentos, numa época em que as armas usadas em tal batalha eram outras, mais dolorosas e letais.
O Coelho escrevia, sempre contra o marxismo, para os jornais da cidade. Seus artigos eram longos, tediosos e incompreensíveis para as pessoas comuns, ou seja, quase todos os leitores. Fenomenologia era a palavra mais simples que usava.
Na verdade, não eram bem artigos: eram esboços de teses, dissertações abastecidas de notas de rodapés e citações de filósofos e pensadores de antanho, com argumentos que julgava sólidos para demolir a notável arquitetura do pensamento marxista. Como ninguém o contestava, é impossível saber se ele estava ou não com a razão.
O tempo passou, o muro de Berlim caiu, o socialismo real da União Soviética se desmanchou, e o Coelho e seu antimarxismo radical passaram apenas a fazer parte de minhas lembranças quase esquecidas dessa época de sonhos.
As poucas notícias que tive desse tempo era que ele havia abandonado seus artigos político-sociológicos e passado a falar sobre o amor platônico. Achei a opção natural. Ele apenas trocava o alvo de suas preocupações. Se não havia mais o perigo de o comunismo triunfar, que o amor fosse então vitorioso.
Há poucos anos, fiquei sabendo que o Coelho havia morrido. Antes disso, porém, talvez vendo que já estava perto da viagem final, combinou com os poderes constituídos trocar a sua biblioteca por um túmulo no cemitério que mais apreciava, por ter sido feito num morro e ser bastante amplo.
E lá ele descansa. E estaria ainda num lado de minha memória não fossem essas últimas notícias, vindas de todas as partes, dando conta de que também o capitalismo - ou pelo menos seu lado mais radical - não deu certo e a nação mais poderosa do mundo, ícone supremo da livre iniciativa, elegeu seu primeiro presidente negro para consertar a lambança feita pelo antecessor branco, de extrema-direita, cristão fundamentalista, um verdadeiro horror.
Gostaria que o Coelho estivesse por aqui para me explicar algumas coisas que eu não consigo entender muito bem.
Eu cheguei a conversar com o Coelho pós-Muro de Berlim e ele não estava nada otimista, achava que o "nazi-bolchevismo" seria substituído por uma sociedade ultra-consumista e esse era seu novo inimigo, a mercantilização da vida. Estava certíssimo.
ResponderExcluirFora questões relativas ao materialismo histórico, cabe ressaltar que néscios e estultos dominam cada vez mais a humanidade. A pobreza intelectual é tanta, que várias coisas, relacionadas principalmente à arte, que eram consideradas ruins, passam a ser menos ruins nos dias hodiernos. Nem falarei da ergofobia predominante por nossas terras. "É a queda do império romano!"
ResponderExcluirEntre poucas coisas, os encontros com Coelho, me deixam saudades.
...E me dá mais uma antarctica!!!!
De Santos/SP: José Luís
O Coelho era um consumidor exigente. A cerveja tinha de ser Antarctica. E a dose era contada: se me lembro, quatro ou cinco por madrugada.
ResponderExcluirE a cerveja tinha que ser muito, mas muito gelada mesmo! O Valdir lembra disso.
ResponderExcluirJosé Luís