Os repetidos crimes cometidos pela revista Veja sob o disfarce do jornalismo me fizeram relembrar como fazia bem para a alma trabalhar nas redações no tempo hoje chamado de "romântico" da profissão.
É verdade que enquanto a alma se sentia leve, o corpo doía, machucado por jornadas que mais pareciam as dos pobres coitados que viveram a pré-revolução industrial.
Tínhamos hora para entrar, mas dificilmente para sair.
Na verdade, vivíamos um mundo à parte, no qual as horas eram desconhecidas, as mazelas do dia a dia esquecidas, e as emoções tão comuns nos outros, simplesmente dissipadas na fumaça mal cheirosa dos cigarros.
Fumávamos muito.
Bebíamos muito.
Trabalhávamos como burros de carga ou camelos em plena travessia do Saara.
Lembro que certo dia, décadas atrás, ao entrar na redação do Jornal de Jundiaí, o JJ, vi um dos nossos mais prolíficos redatores/repórteres dormindo em sua mesa, cabeça derrubada sobre a máquina de escrever. Acordou quando a sala também acordava, sob o impacto da chegada do pessoal. Olhou-nos, deu um bocejo, passou a mão no rosto e disse, simplesmente:
- Nossa, trabalhei tanto essa madrugada que senti a barba crescer.
E se levantou, pegou o paletó onde, diariamente, puxava dos bolsos dezenas de pequenas anotações em pedaços de papel que se convertiam em notícias, pequenas crônicas do dia a dia da provinciana Jundiaí da década de 70, e partiu para a rua, onde conversava com todo tipo de gente - garçons, taxistas, empresários, políticos.. -, para recolher a matéria-prima de seu ofício.
O jornalismo era, então, tenho de admitir, uma profissão quase perfeita para os desajustados em geral, para aqueles que detestavam a rotina, os ritos, os afazeres repetitivos, o relógio ponto.
Era mais que uma profissão - era um sacerdócio.
Se não fosse assim, como explicar por que nos submetíamos, por uma miséria de salário, a viver tantas horas em constante tensão para produzir, nas condições mais precárias possíveis, algo que, para o público, tivesse algum valor?
Nos mais de 40 anos em que trabalhei em redações, minúsculas e gigantescas, apreciei a notável evolução tecnológica da profissão - comecei ainda no império das linotipos, dragões de ferro que cuspiam barras de chumbo e soltavam fumaça de suas entranhas, e terminei imerso no silêncio de uma sala infestada de cabos a ligar computadores com telas capazes de estampar uma realidade mais perfeita que a própria realidade.
Vivenciei, também, para meu profundo desgosto, a transformação do jornalismo em um ofício frio, sem coração e sem alma, e, pior, em um mero instrumento de lobby dos patrões, ou, num sentido mais amplo, dos interesses da classe econômica dominante.
Nos velhos tempos do JJ seu dono também fazia isso, descaradamente. A diferença é que, por sermos então jovens e idealistas, compensávamos o cumprimento das ordens de cima, a maioria delas pueril, tocando nossos projetos, bem mais interessantes e importantes para a comunidade, sem pedir permissão para o patrão.
Era uma espécie de toma lá, dá cá.
Neste Brasil de agora, para nossa desgraça, o jornalismo permite tão somente o toma lá.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirIncrível, mas é verdade. Trocaram o Jornalismo pelo mentirismo, babacalismo, fofocalismo e puxa-saquismo. Danem-se! Jornalismo agora só nos blogs sujos. Graças a Deus.
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