quinta-feira, 14 de março de 2013

Deus Desce à Terra

O miniconto reproduzido a seguir faz parte do meu livro "O Riso Solto do Homem Insignificante" e também está disponível no blog Contos do Motta, que reúne dezenas de peças ficcionais - que poderiam ser verdadeiras. Claro que a escolha do novo papa, um personagem ainda a ser decifrado, me inspirou a trazer a este espaço costumeiramente reservado a comentários sobre o cotidiano essa inocente brincadeira.


Deus Desce à Terra  


Assustado com notícias de que muitos habitantes da Terra não só já questionavam a sua existência, mas até faziam troça dela, devido, principalmente ao estado desolador das coisas no minúsculo e insignificante planeta, Deus achou que precisava resolver logo esse problema. Convocou uma coletiva de imprensa na sede de sua empresa, no Vaticano. 
Quando entrou na sala, ficou intrigado com o pequeno número de repórteres presentes. Chamou seu agente terrestre de lado e perguntou: 
- Papa, que história é essa? Não tem quase ninguém aqui! O sr. tem certeza que divulgou mesmo a minha entrevista? Isso é um absurdo! 
O papa, constrangido e envergonhado, ainda teve forças para dar uma resposta:
 - Eu fiz o que pude! 
Deus nem escutou, abandonou o seu representante e, com passos furiosos, dirigiu-se ao microfone instalado numa mesa retangular de madeira maciça naquela imensa sala de seu palácio terreno.
- Vamos logo com isso que eu tenho mais coisas a fazer - disse, com a autoridade de quem está acostumado a mandar. 
Como um prolongado silêncio se seguiu a essa frase, foi obrigado a continuar: 
- E então, ninguém tem nenhuma pergunta a fazer? É bom aproveitar esta oportunidade, porque não é sempre que eu venho aqui nesta porcaria de planeta. Aliás, só desci aqui desta vez porque recebi relatórios preocupantes. Parece que andam falando que me afastei do comando do meu negócio e assim achei melhor resolver tudo de uma vez. 
Uma mão solitária se ergueu entre a meia dúzia de pessoas sentadas na improvisada platéia daquele salão reluzente de dourado: 
- Eu tenho uma pergunta, sim - disse um jornalista que usava óculos e tinha uma barba rala. 
- Pois fale logo - trovejou o cada vez mais irritado Deus. 
- Como é que vamos saber se você é mesmo Deus? Pergunto isso porque estamos aqui vendo uma pessoa igualzinha a nós, só que muito mais mal humorada... 
- Próxima pergunta - cortou Deus, dando um murro na mesa. 
Mais de dez segundos se passaram para outra mão, de uma moça morena de traços orientais, se levantar:
- Se você é mesmo Deus, dê provas disso agora e faça um milagre para a gente ver - falou em tom atrevido.
A esse desafio se seguiu um rumor generalizado, só desfeito quando Deus ficou de pé e fez um amplo movimento com os braços, como se estivesse regendo uma orquestra invisível. Um estrondo foi ouvido, o salão ficou imediatamente tomado por uma névoa vermelha e centenas de pombos escreveram no ar a frase "deus existe!"
Os repórteres se olharam, a princípio com um ar intrigado, até que o salão foi tomado por sonoras, soltas e quase incontroláveis risadas. 
Deus se virou para seu agente, que durante toda a coletiva havia permanecido a cerca de dois metros atrás dele, de cabeça baixa. Sem esconder a perplexidade, perguntou:
- Mas que diabos é isso? Essa gente ficou louca? 
Enquanto o papa balbuciava palavras incompreensíveis, abafadas pelo riso que ia se extinguindo aos poucos, o repórter que havia feito a primeira pergunta se encaminhou para a mesa, apertou a mão do já atônito Deus e falou, se despedindo: 
- Olha, não sei quem você é, mas até que valeu a pena vir até aqui. Fazia tempo que eu não me divertia tanto. O truque das pombas foi bem legal. Faltou só um detalhe para eu dar nota 10 a ele: Deus é com o "d" maiúsculo. 
Foi embora, de braços dados e conversando animadamente com a morena de traços orientais. Japonesa? Coreana? Tailandesa? Provavelmente chinesa. 
E a Terra continuou a girar e a girar e a girar, incansavelmente.

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