domingo, 26 de setembro de 2010

A involução humana


Não conheço nenhuma pessoa que seja a favor de restringir a atuação da imprensa no Brasil. Mas já vi vários conhecidos, gente que até outro dia acreditava em tudo o que lia na Folha, no Estadão, no Globo ou na Veja, achando que desta vez as coisas estão passando do limite.
Nem preciso lembrar as manchetes dos jornalões nesses últimos dias, todas com o propósito mais que claro de atingir, de qualquer modo, a candidata governista à Presidência. Gente bem mais gabaritada do que eu já tratou exaustivamente desse assunto em tudo quanto é lugar.
Sobre esse assunto da liberdade de imprensa tenho pouco a falar. Sei apenas que nenhum jornal, nenhuma rádio, nenhuma televisão, pode ser considerada dona da verdade. Nenhuma notícia é inteiramente imparcial, nenhuma informação é completa, e se saem duas notícias iguais é porque uma é cópia da outra, pois se forem de dois repórteres diferentes, elas também serão diferentes, por uma razão simples: as notícias são escritas por pessoas, e não existem dois seres humanos iguais. Cada um vê a realidade de seu jeito próprio, conta a história da sua maneira.
Notícia não é ficção, ou não deveria ser. É simplesmente o relato de um fato sob vários pontos de vista. O repórter, como diz o nome, deveria apenas reportar, narrar o acontecido, através da narração de envolvidos no fato - e aí é que tudo começa a ficar mais complicado, porque, da mesma maneira que o narrador, as testemunhas também veem a realidade sob ópticas distintas.
Por isso é que todos os manuais de redação mandam - e não simplesmente recomendam - ouvir o "outro lado", o contraditório, o acusado, o réu, seja lá que nome queira se dar a esse personagem, que funciona como uma espécie de contraponto à versão principal. E muitas vezes se descobre que é exatamente esse "outro lado" que tem a história mais plausível.
O que ocorre hoje na imprensa brasileira é que ela tem "esquecido" de ouvir o outro lado - entre outros pecados graves, como o uso de fontes desqualificadas, a apuração incompleta, o ajustamento do fato à pauta, a redação mal-feita etc etc.
A falta de uma legislação que obrigue as empresas jornalísticas a corrigir esse erro rapidamente, para que, pelo menos, o acusado tenha direito de defesa, como deve ser em qualquer sociedade dita civilizada, serve de álibi para que essas faltas sejam perdoadas. Para que uma Lei de Imprensa se já existe o Código Penal, argumentam, cinicamente, os defensores do status quo, que sabem muito bem como é lenta e cara a Justiça brasileira.
Bem, esta crônica não pretende ser um tratado sobre os males da imprensa nativa. É apenas para lembrar que o jornalismo que estamos vendo hoje está muito distante do que deveria ser: uma atividade que, em última análise, engrandece a obra humana, pois permite que se faça um retrato sincero da evolução da sociedade, com todas as suas marchas e contramarchas, vitórias e derrotas, boas e más ações.
O que não dá para engolir, porém, é quando a gente lê um título como esse que esteve um dia todo na página principal do site da Veja: "Incêndio em favela da Zona Sul de São Paulo complica trânsito".
Aí, e sinto muito se ofendo alguém, não tenho como deixar de perguntar: afinal, para que serve essa tal de liberdade de imprensa que os patrões tanto querem?
É para fazer esse tipo de jornalismo? É para desprezar a esse ponto o ser humano?

Um comentário:

  1. Lembram-se destes versos?
    "Morreu na contramão atrapalhando o trânsito..."
    (Construção - Chico Buarque)

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