Meu velho e prezado amigo Dagoberto Azzoni, o Dago, enviou um comentário a respeito da crônica Blogs Sujos que me provocou, ao mesmo tempo, um tanto de nostalgia e de desesperança. Nele, relembra o sociólogo Antonio Geraldo de Campos Coelho, figura inesquecível da Jundiaí do tempo em que éramos jovens.
Entre tantas peculiaridades, a que mais chamava a atenção no Coelho era o seu ferrenho anticomunismo. Seu maior prazer era derrotar o adversário, ou quem se dispusesse a debater com ele, sob o embalo de vários copos de cerveja Antarctica, apenas pela argumentação, baseada em seus conhecimentos teóricos, que incluíam história, filosofia e sociologia .
O Dago não se esquece de um dos detalhes mais interessantes dessas noitadas, o fato de o Coelho ter sempre à sua disposição um seguro "bunker" contra os tipos indesejáveis que pretendiam participar da conversa, geralmente no bar Ponto Chic, que ficava ali na praça Governador Pedro de Toledo - o outro lado do balcão.
Ali, sob a proteção de copos, garrafas, salgadinhos e um enorme pernil assado, passava horas a expor os argumentos com os quais pretendia demolir o sólido alicerce marxista. Não chegávamos a nenhuma conclusão, o embate não resultava em ninguém ferido - pelo menos fisicamente - e todos íamos para a casa com a sensação de que o nosso mundo era, se não perfeito, pelo menos divertido.
O Dago termina o seu comentário com uma constatação que endosso totalmente, não sem uma alta dose de desalento. Diz ele, sem dúvida sob o efeito desta campanha eleitoral rala e sem novidades: "Hoje, vendo o Serra se afundar sozinho na areia movediça em que se meteram os 'intelectuais' tucanos e seus serviçais na velha mídia, sinto falta de um bom combate de idéias, de fazer brotar argumentos que me façam sorrir ao ver a derrota estampada na cara do adversário ideológico, ou mesmo ter que concordar, a contragosto, diante de uma resposta bem construída, numa discussão de bom nível. E acabo concluindo, com um sentimento de pesar, reconheço: também nisso o mundo ficou mais chato!"
É isso. Para nós que tivemos o Coelho como "adversário" não existe coisa mais aborrecida que ler ou ouvir essa turma da direita de hoje, truculenta, apalermada com os avanços do país, inconformada em ter perdido grande parte de seus privilégios, estarrecida por ter visto seus dogmas mais preciosos virarem pó.
Dá mesmo uma saudade imensa do Coelho. E daquele tempo em que as ideias eram as armas mais poderosas que nós tínhamos para, pelo menos, quebrar a monotonia do dia a dia.
Reproduzo abaixo uma crônica de 2008 que mostra um pouco mais do Coelho. É um "retrato" muito imperfeito, porém, na medida do possível, honesto:
O Coelho e o fim das coisas
A revista Reader's Digest traz até hoje uma seção chamada Meu Tipo Inesquecível. O título é auto-explicativo: as pessoas lembram de outras que as marcaram pelo resto da vida.
Não sei se todos tiveram o privilégio de encontrar um tipo inesquecível. Afortunado, posso dizer que lá pelos anos 70, na então pacata Jundiaí, topei com uma dessas pessoas que não se esquecem facilmente, pela simples razão de que são, de alguma maneira, diferentes das outras.
Quem conheceu o sociólogo Antonio Geraldo de Campos Coelho certamente sabe que ele era uma desses tipos. Maluco, diziam alguns; apenas excêntrico, diziam outros. Certo é que ninguém que conversasse com ele, por poucos minutos que fosse, sairia indiferente da prosa.
O , Coelho tinha uma erudição total para temas que o fascinavam, como a sociologia política, e era absolutamente analfabeto para outros, mais triviais, como o futebol - ou o ludopédio, como se referia ao esporte preferido dos brasileiros.
Era cheio de manias. Não admitia, por exemplo, que o chamassem de professor - embora, em certa época da vida tivesse dado aulas. Para ele, o "epíteto" soava degradante, pois o igualava ao instrutor de capoeira, que, para o senso comum, também era professor.
Também apelidava amigos e inimigos. Entre nós havia o Chocolate, o Estilingue, o Peixe-Galo, o Menino Lobo, o Homem de Palha. Não sei porque, fiquei fora da lista.
Mas o que distinguia mesmo o Coelho dos outros mortais era o fato de que ele se dedicava, com uma paixão cega, a combater o marxismo. E, como em várias outras coisas, fazia isso de um modo peculiar: procurava vencer o inimigo por meio de argumentos, numa época em que as armas usadas em tal batalha eram outras, mais dolorosas e letais.
O Coelho escrevia, sempre contra o marxismo, para os jornais da cidade. Seus artigos eram longos, tediosos e incompreensíveis para as pessoas comuns, ou seja, quase todos os leitores. Fenomenologia era a palavra mais simples que usava.
Na verdade, não eram bem artigos: eram esboços de teses, dissertações abastecidas de notas de rodapés e citações de filósofos e pensadores de antanho, com argumentos que julgava sólidos para demolir a notável arquitetura do pensamento marxista. Como ninguém o contestava, é impossível saber se ele estava ou não com a razão.
O tempo passou, o muro de Berlim caiu, o socialismo real da União Soviética se desmanchou, e o Coelho e seu antimarxismo radical passaram apenas a fazer parte de minhas lembranças quase esquecidas dessa época de sonhos.
As poucas notícias que tive desse tempo era que ele havia abandonado seus artigos político-sociológicos e passado a falar sobre o amor platônico. Achei a opção natural. Ele apenas trocava o alvo de suas preocupações. Se não havia mais o perigo de o comunismo triunfar, que o amor fosse então vitorioso.
Há poucos anos, fiquei sabendo que o Coelho havia morrido. Antes disso, porém, talvez vendo que já estava perto da viagem final, combinou com os poderes constituídos trocar a sua biblioteca por um túmulo no cemitério que mais apreciava, por ter sido feito num morro e ser bastante amplo.
E lá ele descansa. E estaria ainda num lado de minha memória não fossem essas últimas notícias, vindas de todas as partes, dando conta de que também o capitalismo - ou pelo menos seu lado mais radical - não deu certo e a nação mais poderosa do mundo, ícone supremo da livre iniciativa, elegeu seu primeiro presidente negro para consertar a lambança feita pelo antecessor branco, de extrema-direita, cristão fundamentalista, um verdadeiro horror.
Gostaria que o Coelho estivesse por aqui para me explicar algumas coisas que eu não consigo entender muito bem.
Nunca imaginaria que ia sentir saudades de um integralista! O Coelho criticava os marxistas, mas sempre com respeito - e igual a você e o Dago Azzoni, nunca chegávamos a nenhuma conclusão. Vivia dizendo que Cuba era uma monocracia.
ResponderExcluirNo entanto, ao menos tínhamos algo em comum politicamente: não gostávamos de tucanos. Tanto é que em determinado debate entre eu e um tucano (do Divino Salvador) no JJ, escreveu um artigo dele, me dando autorização para assiná-lo. Recusei, não é do meu feitio. Mas o artigo era bom!
Uma coisa que ele sempre me recordava: você é a pessoa que mostrou historicamente o que foi o kamikaze! Ficou maravilhado com a história e sempre me recordava.
Acho que era uma das pessoas mais inusitadas que já conheci! - Saudades do Coelho!!
O Coelho era único, mesmo, Douglas.
ResponderExcluirAbs.
Motta