domingo, 14 de dezembro de 2008

A morte do João Lemos

Como se sabe, a crise financeira que ameaça o mundo todo foi criada no hemisfério norte. E, embora tenham sido feitas várias tentativas de tropicalização, Papai Noel ainda usa pesadas roupas contra o frio, típicas da parte de cima do planeta, onde se concentra quase toda a riqueza material acumulada pelo homem.

É fato também notório que o Brasil deve ser um dos países nos quais os efeitos da crise deverão ser menos danosos. Talvez não chegue em nossas praias nem a marolinha dos otimistas, nem o tsunami dos catastrofistas, mas alguma onda forte, que, igual a todas, acabará se desfazendo em espumas.

Mesmo assim, apesar de o Brasil ter sido um menino bem comportado este ano (e nos anteriores, é bom lembrar), Papai Noel, o barbudo que tomou a si o papel de ser tanto júri quanto juiz, resolveu presentear o país com algo de valor no mínimo duvidoso: se por um lado essa sua oferta tem um nome que evoca lembranças cristãs, por outro suas aparições despertam outros sentimentos, digamos, mais primitivos.

Pois não é que o Natal de 2008, rondado pelo tal "fantasma da recessão", ficará marcado como o da Madonna - não a suave figura dos quadros renascentistas, mas a agitada deusa pop idolatrada por grandes platéias em todo o mundo? Seja nos jornais, seja no rádio, seja na televisão, só dá Madonna, um dos ícones máximos, na área artística, do garrote globalizador que asfixiou o planeta nas décadas de 80 e 90.

O tipo de "arte" feito por ela se espalhou pelo mundo como uma febre maligna e ainda sobrevive com muita força nos países periféricos, especialmente entre uma classe média que adora macaquear valores culturais importados principalmente dos Estados Unidos, esse império que, pelos seus desatinos, levou todos à beira do precipício.

A tal da madonnamania (Madonna mia!) me fez perguntar a mim mesmo se sou só eu que me incomodo com essas coisas. Mas bastaram apenas alguns minutos e a internet, a maravilha das maravilhas contemporâneas, se encarregou de aliviar meus pesadelos.

É que fiquei sabendo, por meio de alguns cliques no fantástico Google, que um dos maiores defensores da cultura brasileira, Ariano Suassuna, autor dos essenciais Romance d'A Pedra do Reino e O Auto da Compadecida, fez a seguinte pergunta numa de suas famosas aulas-espetáculos: "Por que um país rico em cultura tem de idolatrar esses débeis mentais?", referindo-se aos artistas pops americanos e a quase todo o conteúdo cultural daquele país.

Mestre Ariano, na mesma ocasião, explicou que “se, antes, os Estados Unidos mandavam porta-aviões para dominar um país, hoje basta mandar Michael Jackson ou Madonna”. Citou como exemplo de fusão bizarra a música do pernambucano Chico Science, inventor do “mangue-beat”, mistura de maracatu com rock.


Contou que o músico, o procurou, interessado em fazer parte do Movimento Armorial, criado por Ariano na década de 70:

- Primeiro então perguntei porque ele não se chamava Chico Ciência. Ele me explicou que sua música tinha o intuito de valorizar o maracatu rural, mas que ele misturava com rock senão seria liquidado. Mas como uma coisa ruim pode valorizar uma coisa boa? Eu estava de acordo com a parte Chico dele, mas não com a Science.

Ariano, nessa mesma aula-espetáculo, resumiu assim sua relação com a cultura americana:

-Tem gente que vem perguntar a mim: 'Você é contra a cultura americana?' Deus me livre. Não tenho nada contra a cultura americana, não tenho nada contra a cultura americana verdadeira. Não tenho nada contra Melville, grande escritor, autor de Moby Dick, autor de uma obra-prima da literatura universal. Agora, contra Michael Jackson e Madonna eu tenho, porque querem nivelar por ali. Deus me livre. Os próprios americanos que têm juízo são contra também. Não podem ser a favor de uma porcaria daquela.

Há gente que acha um absurdo o radicalismo com que Ariano Suassuna defende a cultura popular brasileira, desprezando e ironizando tudo o que vem de fora - principalmente em língua inglesa.

Ficou famoso o "causo"que contou a respeito de John Lennon:

- Quando ele morreu, meu filho me avisou, e eu perguntei: quem é John Lennon? Eu não sabia! E meu primo, que é pior do que eu, achou que era um amigo nosso, o João Lemos, que tinha morrido.

Nestes tempos em que Madonna é o grande presente de Papai Noel ao povo brasileiro que luta e sofre no dia-a-dia para consolidar a sua jovem democracia, acho que é bom a gente refletir sobre o que seria de nós se não tivessemos pelo menos um Ariano Suassuna para nos defender.

Porque em certas situações só um bom bofetão é capaz de devolver as pessoas à razão.

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