domingo, 19 de fevereiro de 2012

A fúria do João


Acabo de ler a biografia de um grande brasileiro, "João Saldanha - Uma Vida em Jogo", de André Iki Siqueira (Companhia Editora Nacional, 551 páginas), que ganhei de amigos. Saldanha, para os mais novos que talvez não o conheçam, foi jornalista esportivo, treinador do Botafogo e da seleção brasileira, e um tenaz e obediente militante comunista - essa talvez seja a sua faceta menos conhecida.
Era, segundo o relato de seus inúmeros amigos, um contador de casos extraordinário. Muitas vezes acrescentava detalhes que só havia vivido em sua imaginação.
Era, também, um comunicador, seja no rádio ou televisão, brilhante, parecia que tinha nascido para aquilo. Seus comentários de futebol - lembro de alguns na transmissão por TV da Copa de 70 - iam direto ao ponto, tinham a concisão e a objetividade pouco vistas nos profissionais de hoje.
Saldanha discutia o jogo com a maior naturalidade possível. Podia fazer isso, pois entendia do negócio. A seleção tricampeã de 70, dirigida pelo amigo Zagallo, foi montada quase toda por ele, que a levou a uma classificação memorável, depois do fracasso nos campos da Inglaterra, em 66. Eram as "feras" do Saldanha, um contraponto aos "canarinhos" de até então.
Polemista por natureza, acho que Saldanha teria se dado muito bem se estivesse vivo nestes tempos de internet. Bateria com folga esses sujeitos que acham que debater é xingar o oponente, que trocam a defesa de pontos de vista por acusações vagas, que, sem argumentos, sabem apenas caluniar e injuriar o adversário.
Comunista de carteirinha, Saldanha teve em Nelson Rodrigues, seu oposto ideológico, um de seus maiores amigos, quase um irmão.
É comovente a crônica "João Sem Medo", que Rodrigues escreveu no "Globo" para saudar a boa campanha que o amigo fazia no comando da seleção:
"Amigos, não acreditem, pelo amor de Deus, que as qualidades influem no amor. Influem pouquíssimo ou nada.
Por exemplo: o meu caro João Saldanha. Tenho-lhe um afeto de irmão..Quebrei minhas lanças para que a CBD o escolhesse. João Havelange e Antônio do Passo tiveram um momento de lucidez ou mesmo de gênio, e o chamaram. Ao ler a notícia, berrei: 'É o técnico ideal!' Um amigo meu, bem-pensante insuportável, veio-me perguntar: 'Você acha que o João tem as qualidades necessárias?' Respondi: 'Não sei se tem as qualidades. Mas afirmo que tem os defeitos necessários.' E, realmente, o querido Saldanha possui defeitos luminosíssimos."
Pois é, Nelson Rodrigues, outro brasileiro genial, enxergava os "defeitos" de Saldanha como virtudes. "É um furioso", escreveu nessa sua crônica famosa.
Nada mais certo que ver na fúria com que Saldanha investia contra a corrupção, contra as injustiças, contra as safadezas das autoridades, contra as mazelas do capitalismo, algo bom, depurador, libertador.
O episódio em que mandou um recado ao ditador da época se tornou inesquecível. Médici queria que Dario, o Dadá Maravilha, fosse convocado para a seleção. Médici podia tudo, menos dobrar o João Sem Medo: "O senhor organiza o seu ministério, e eu organizo o meu time", foi a sua resposta ao mais sinistro chefe de Estado que o Brasil já teve.
Hoje, com tais "defeitos", Saldanha seria imbatível nas duas áreas em que atuou.
Como jornalista, seria um exemplo de que a profissão é muito mais do que a transcrição de falas de autoridades ou a defesa incondicional da oligarquia.
Como militante político, estou certo que traria lucidez a um embate que, muitas vezes, se esquece de incluir o ser humano como elemento primordial de qualquer ação.
O João Sem Medo que sai da biografia escrita por André Iki Siqueira é mais que um mito, é um homem de carne e osso, um cidadão, acima de tudo. E é isso que o faz grande.

Um comentário:

  1. Toda vez que estou em algum restaurante (coisa rara)lembro do grande João Saldanha, ele sempre dizia que a pior coisa é estar no restaurante e o garçom não estar atento como zagueirão não ver o atacante livre, tem que ficar gesticulando para o animal perceber...

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