segunda-feira, 13 de maio de 2013

O coronel, um grão no deserto

O coronel e a sua verdade:
é tempo de o país parar de mentir a si próprio
(Foto: Wilson Dias/ABr)
Quem não tem ideia do que foi a ditadura militar no Brasil, ou pensa, ingênua ou cinicamente, como a Folha de S. Paulo, que a definiu como uma "ditabranda", assegurando que não houve, naquele período de horror, tantos presos, torturados, desparecidos e mortos como em outros países do continente, deve ler o livro "Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo", do jornalista Mário Magalhães (Companhia das Letras, 732 páginas).
Mais que a biografia de um personagem central da história das lutas revolucionárias do Brasil no século 20, o comunista baiano Carlos Marighella, o livro mostra o que foram aqueles anos pós-golpe de 1964 e o que um Estado pervertido é capaz de fazer com a sua juventude idealista, com os sonhos de uma geração que acreditava que o país poderia superar injustiças centenárias que o impediam de avançar no ritmo de suas potencialidades.
O testemunho do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra na Comissão Nacional da Verdade, na semana passada, foi a prova mais cabal, mais perfeita, mais viva, da degeneração do caráter moral de um sistema político-social.
Seu comportamento, sua arrogância e cinismo, a desfaçatez com que mentiu, a exibição de um raciocínio que inverte valores, a desconsideração pela vida humana, tudo isso que o coronel brilhantemente mostrou no seu depoimento, encerra qualquer debate sobre o que homens como ele foram capazes de fazer com o Brasil.
No livro de Mário Magalhães, que foi extremamente cuidadoso na checagem de seu relato, o coronel Brilhante Ustra é citado em seis ocasiões, em todas se comportando como um criminoso de guerra, na hipótese, segundo os militares, de a repressão aos movimentos revolucionários ter sido uma guerra contra o terrorismo, ou como o mais sádico e vil dos torturadores, se acreditarmos, como revelam todas as provas historiográficas, que os tais "terroristas" eram, na verdade, cidadãos que se dispuseram a enfrentar, com armas, um regime usurpador, ilegal e despótico, instalado no país sob o apadrinhamento de uma potência externa - um regime que silenciou a oposição usando todo o tipo de violência.
O Brasil é um país que tem, pelo menos, nos últimos anos, tentado se modernizar, se democratizar plenamente, acabar com desigualdades seculares pérfidas. Mas há ainda um longo caminho para que realmente os ares da civilização ao menos bafejem seus mais de 8 milhões de km2 e seus mais de 200 milhões de habitantes.
Romper com a mentira de tantos anos, pôr no lugar que merecem, por justiça, estar quem tanto mal, tanto sofrimento, tanta iniquidade causou a milhares de pessoas, em particular, e à toda nação, no geral, seria um bom indício de que as coisas estão mudando mesmo para valer por aqui.
Para tanto, porém, é preciso coragem, determinação, vontade, desprendimento.
É necessário também superar certos traumas ainda latentes, certos medos subjacentes ao nosso dia a dia, resultantes justamente daqueles tempos de terror.
Seus inspiradores estão ainda por ai, atormentando milhões de pessoas - jovens, pobres, pretos -, nas periferias das grandes cidades, agindo pelas suas próprias leis, julgando quem deve ou não viver, quem deve ou não morrer, nas vielas mais recônditas, nas celas e salas das delegacias, em plena luz do dia ou acobertados pela escuridão.
O coronel Ustra, nesse cenário, é apenas um grão de areia de um imenso deserto - um deserto completamente seco de humanidade.

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