terça-feira, 5 de abril de 2016

Quando a ficção supera a realidade

Gabriel Garcia Marquez, um dos maiores escritores de todos os tempos, dizia que um bom livro tem sempre um bom início.

O parágrafo inicial de sua obra-prima, "Cem Anos de Solidão", é um exemplo perfeito do que falou:

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos."

Garcia Marquez, óbvio, não desenvolveu sozinho esse conceito de escrita. Fez apenas o que outros gigantes da literatura ousaram antes dele.

Como o inglês Charles Dickens, em seu "Um Conto de Duas Cidades":

"Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. Tínhamos tudo diante de nós, não havia nada antes de nós. Todos íamos direto para o céu, todos íamos direto para o outro lado."


Gabo e Dickens, além de excepcionais escritores, tinham em comum um senso de humanidade e um poder de observação das peculiaridades do ser humano que, se fossem estendidos a mais pessoas, seriam capazes de deixar este um mundo menos miserável, moral e eticamente.

Velho, à beira da morte, o coronel Aureliano Buendía se recorda das novidades, das maravilhas, das "invenções", que os ciganos levavam àquela minúscula povoação que tantos prodígios despertou na sua memória.

Dickens, por sua vez, nos revela que todas as coisas têm os seus opostos, que nada é definitivo como se apresenta e que temos de conviver com o fato de que só existe o bem porque há o mal, só há a claridade porque existe a escuridão.

As duas cidades tratadas por Dickens são Paris e Londres, afetadas pela revolução francesa.

Gabo eleva a Macondo imaginária à categoria dos lugares em que a fantasia se sobrepõe à realidade.

Paris, Londres e o tempo das contradições; Macondo e o gelo brotando no clima tropical.

Dickens e Garcia Marquez, a ditadura e a democracia, a escravidão e a liberdade, o ódio e a aceitação do diferente.  

O Brasil que ensaia uma volta ao passado.

O Brasil que  se rende à ficção. (Carlos Motta)

Um comentário:

  1. Aqui no Brasil o que parece superar a realidade não é a ficção, é a fissuração. Desde o dia que pegaram aquele helicoptero tem gente que endoidou de vez. Cadê? Cadê? Eh eh. Haja folego pro impeachment. Sniiiiiif!

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